Pega a visão! Se liga que o presente é coisa do passado! Um monte de histórias inspiradas em outras tantas, com dicas de Penélope Martins.
E falando em presente e passado…
As tecnologias digitais são temidas por muita gente. É que causa espanto o fluxo de informações e desinformações que correm as telas, despejando conteúdos questionáveis, inundando nossas vidas com repetições de assuntos ou as atuais “modas de dancinha” no tique de tocar músicas de apenas dez segundos.
Que loucura esse mundo, não acha? Há quem diga, de forma preocupada e muitas vezes ranzinza, que essa salada de misturas é um horror de tão indigesta e que bom mesmo era no passado. Eu não vejo assim. A vida é movimento, afinal de contas.
A ideia do tempo histórico, apelidado como simples passado, não devia nos parecer algo tão longe e dissociado do que se vive agora. Com uma metáfora pueril, o passado pode ser vislumbrado como a belíssima topada que demos com o dedão do pé naquele dia feliz da infância: fazia sol e todos estavam gritando de alegria, durante uma disputa de bola no terreno baldio (e a unha pode até ter se perdido junto com a brincadeira interrompida pelo sangue espichado). Naquele momento, a máxima sentença proferida dizia: nunca mais repito essa aventura. Ora, que bobagem. Bastaria que alguém nos chamasse para o quintal da vida, e lá estaríamos. O ferimento cicatrizado fecha a dor, a memória relativiza a ponto de encorajar em nós a nova partida, dessa talvez com a experiência de evitar os pés descalços, o que faz do passado o tempo com o presente do que foi aprendido.
O que fazer com o passado se não aprender a viver o presente?
O mês de março, por causa do dia 8 e da imensa quantidade de publicações um tanto desmemoriadas, parabenizando as mulheres no enaltecimento de uma sensibilidade quase desmaiada, divide as redes sociais: aceita ou não as rosas, ou agora é só no Pix?
Confesso que eu fico com as rosas, inclusive pelos espinhos que me recordam tantas mulheres e, ao mesmo tempo, me inspiram exemplos de superação e enfrentamento, inteligência e confiança. É que eu trago em mim muito passado.
Pega a visão! Mulheres poetas deste solo latino-americano
Poderia listar nomes e mais nomes, ainda assim cometeria a injustiça de esquecer tantas mulheres igualmente importantes para meu sangue. Não o sangue da genética, mas o sangue da cultura, aquele que eu oxigeno a cada história lida, a cada dia vivido, a cada canção que escuto e cada pincelada que vejo nas telas.
Por isso, a lista que faço é apenas um recorte que trago do passado para compor essa imensa colcha de retalhos do que sou e somos: Cora Coralina e Frida Kahlo e Violeta Parra, e outras três, de um tempo mais distante, Suzanne Bélair e Esperança Garcia e Juana Inés de la Cruz (em ordem cronológica), todas poetas do meu imaginário (sim, poetas, porque se alguém quer reivindicar um substantivo adequado ao que é binário “os homens que virem poetos”, outra coisa que rende boa discussão, e isso li nas palavras da poeta Alice Ruiz – e jamais esqueci).
Para quem for fazer a lição de pesquisa, certamente haverá um contraponto ao que escrevo aqui, porque Suzanne e Esperança estariam qualificadas pelos verbetes das enciclopédias como revolucionária e primeira advogada do Brasil. Mas o que seriam elas se não poetas?
Mulheres que tecem o tempo futuro na luta contínua por direitos humanos, carregando no ventre da memória o passado de tantas outras ancestrais que fizeram o mesmo de maneira incansável, só podem ser poetas, porque é dessa capacidade narrativa de juntar todos os tempos em verso que se faz a poesia.
Mas e as rosas?
Para encerrar, a respeito do mês de março, podem me dar rosas. Rosas vermelhas, cor de sangue. E um poema, por favor, algum escrito por uma poeta que nos diga a voz e a força das mulheres da América Latina, esse chão que deve acordar do passado a ancestralidade dos povos originários e dos povos que foram brutalmente desterrados de suas origens para construir essas que hoje chamamos de nações latino americanas.
O presente depende dessa relação íntima com a memória, e essas rosas vermelhas no jarro de casa são uma saudação para todas as vidas que foram e pelas que ainda virão. E não retirem delas os espinhos, esses minúsculos receptores das dores do mundo, porque eles me recordam que, na construção desse presente e futuro, não admitiremos mais nenhuma violência contra nenhuma mulher.
“(…)
A mulher descobre estrelas,
faz música, fabrica utopias,
planta árvores, para que
no futuro os homens
se sentem em volta
para aprender a paz.”
(Roseana Murray)
Cai dentro!
Aumenta o som para bailar junto com Violeta Parra, porque além de pintora, a artista chilena que expôs em vida seu trabalho no Louvre, é uma das nossas maiores compositoras. Recomendo começar por duas canções: “Volver a los 17” e “Gracias a la vida”, inclusive com gravações especialíssimas de Mercedes Sosa e Elis Regina, respectivamente.
Quer mais?
Se você curte documentário, procure Todas as Vidas, que narra, com a força da poesia, aspectos pouco conhecidos da vida de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a Cora Coralina. O filme é livremente baseado no livro “Raízes de Aninha”, de Clóvis Brito e Rita Elisa Seda. Clique no trailer oficial para espiar:
Se liga nas prateleiras da nossa biblioteca!
Conheça a poesia de Roseana Murray, com a obra “Com a lua nos olhos”, ilustrada pelas pinturas de Regina Rennó.