Pega a visão! Se liga que o presente é coisa do passado! Um monte de histórias inspiradas em outras tantas, com dicas de Penélope Martins.
Poesia é chato, é difícil e ninguém gosta! Será?
Eu cansei de ouvir coisas horríveis sobre a poesia. “É chato, não gosto de jeito nenhum”… “É difícil de entender, não tem história”… “Ixi, dá vontade de dormir”… Ninguém gosta de poesia?
Minha reação, até por ser poeta, poderia ser das piores, mas confesso que tenho um pouco de preguiça de ser pessimista. Depois da tormenta, a gente sempre tem que achar um jeito de aplacar os ânimos, restabelecer a calma e o humor.
Ler poesia para mim sempre foi uma coisa natural. Antes que alguém pense “também, ela é poeta e deve ter crescido em família de escritores e leitores”, vou logo dizendo: os livros literários eram raros na minha casa e principalmente na casa dos meus avós.
Comilança e brincadeira
A tradição da minha infância se compunha por comilança e brincadeira. A modesta casinha de minha avó materna, por exemplo, tinha uma varanda pequena que servia de palco.
Faça as contas: um casal com cinco filhos casados, cada casal com mais dois ou três filhos, os vizinhos, aquela turma de amigos da tia que tocavam violão, as primas do avô com as netas e os netos… quase que não cabia tanta gente. Só sei que tinha rodízio: crianças comiam primeiro, os pratos eram lavados para o segundo turno. Depois do almoço sempre tinha sobremesa: laranja ou, com muita sorte, cana-de-açúcar. Que delícia isso.
Foi descascando laranja no quintal da minha avó que eu aprendi a fazer uma brincadeira. Mas tinha que descascar inteirinha, sem quebrar. Em seguida, a gente rodava a casca de laranja sobre a cabeça, dizendo, lentamente, as letras do alfabeto. Você vai namorar com alguém da letra J! Ou letra M! Não importa. Estava explicado porque a avó só fazia essa brincadeira com quem tinha uma certa idade.
Enquanto isso, as crianças brincavam de roda, atirando versos. Mas criança, naquele quintal, nunca brincou sozinha. Os tios iam junto. A minha madrinha, o meu padrinho, a dona Joana que morava três casas adiante e adorava uma fofoquinha ao pé do muro. Lembro bem dela, uma graça.
Como autora, eu já visitei diversas salas de aula abarrotadas de estudantes. Sempre pergunto quem gosta de ler. Todo escritor faz isso. Peço para responderem no papo reto, sem medo, porque eu já sou crescida e aguento com a verdade.
O número de leitores de livros no Brasil é assustador. Se você quiser saber mais, joga na roda da internet para saber quantas pessoas compraram livros de literatura no ano passado e qual o desempenho educacional do nosso país em interpretação de texto.
Pega a visão! E onde está a poesia?
Minha reflexão sobre a leitura acompanha os dizeres do educador Paulo Freire, porque para ler o mundo é preciso ler a palavra, compreender seu sentido e significado, e aprofundar-se nela, interpretando possibilidades. Contudo, essa palavra poética e metafórica que encontramos na literatura e, notadamente, na poesia não se faz presente apenas nos livros.
Podemos até discordar sobre o gosto, mas todo mundo consome trilha sonora. É claro que a melodia e a harmonia nos emocionam, mas são as palavras que organizam e constroem um diálogo interno conosco em várias situações da vida. Escutamos uma canção uma, duas, três, milhões de vezes. Aquele texto rimado, composto para contar uma história ou um pensamento, traz em si a poesia.
Sim, vai ter alguém dizendo agora que isso não vale para esse ou aquele estilo musical, mas vou logo avisando: gosto se discute na medida em que compreendemos cultura como um caldo completo, um quintal de avó generosa, onde cabe todo mundo, até aquela vizinha que espia pelo muro.
Ler poesia no livro tem tudo a ver com essa percepção de musicalidade da palavra. A gente só torna uma coisa natural quando passamos a fazê-la a partir dos instrumentos que manejamos com facilidade. Assim, como falar vem muito antes de ler e escrever, a poesia convida a voz, a sonoridade, a percepção de uma materialidade da palavra, do verso, da estrofe que se constrói como uma miragem, uma visão, um deslumbrar.
Agora, quando falarem para você que poesia não tá com nada, aumenta o som para cantar junto e aproveite para descobrir uma lista célebre de poetas compositores que constroem a trilha sonora da nossa cultura brasileira.
Cai dentro!
Racionais MC’s, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay acharam no rap um caminho para colar poesia de denúncia.
Em 2018, a Unicamp (Universidade de Campinas) anunciou sua lista de leitura obrigatória para vestibulandos e “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais, apareceu ao lado dos sonetos do português Luís Vaz de Camões e da poesia de Ana Cristina Cesar. Em várias canções, além de uma leitura crua sobre a realidade de jovens negros e pobres, esvaziada de possibilidades pelo sistema político, os MC’s compositores constroem metáforas com o universo literário, assim como acontece em O Mágico de Oz.
Se liga nas prateleiras da nossa biblioteca
Mergulhe na poesia e leia em voz alta “Com a lua nos olhos”, de Roseana Murray. O livro é composto com ilustrações de Regina Rennó.