Pega a visão! Se liga que o presente é coisa do passado! Um monte de histórias inspiradas em outras tantas, com dicas de Penélope Martins.
Pega a visão! Escarafunchando palavras
Tive que reler a afirmativa do professor Nikolai Axmacher grifada com destaque em um artigo de jornal, “o esquecimento é crucial para o bem-estar emocional”.
Durante a primeira leitura, a palavra crucial sequestrou minha atenção e não consegui compreender para onde ela me levaria no texto. Desde criança sou assim, gosto de encontrar sentido para as palavras. Era estranho ver meus colegas de classe lamentar quando uma de nossas professoras passava tarefa de pesquisa no dicionário. Ela queria e precisava nos manter ocupados, só não sei se existia um propósito naquela metódica tarefa. Eu me entregava aos momentos silenciosos, folheando as páginas de um livro que, quanto mais pesado, melhor ficava. Descobrir a origem no grego ou no latim, ver a grafia antiga em itálico, fazia com que eu me empossasse da arqueóloga, a aventureira que descobre ossos de dinossauros bem debaixo do nariz de uma cidade inteira.
Nessas idas e vindas das tarefas com o dicionário, aprendi o que significava etimologia. Gosto da palavra, mas continuo fantasiando com fragmentos enterrados. Esse mecanismo de aprofundar passados certamente me conferiu uma estranha habilidade para desdobrar futuros.
Ao reler a afirmativa do professor – grifada com destaque naquele artigo de jornal antigo que ainda me interessa pelo assunto – perguntei-me qual seria, afinal, a palavra exata que Nikolai utilizou para dizer que é bom para o emocional a gente se esquecer das coisas.
Pega a visão! Esquecer é difícil ou essencial?
Axmacher estudou filosofia, tenho certeza que ele conhece o dúbio sentido da palavra crucial, desafiadora ou essencial, e a expressão da tirania que a acompanha: “entre a cruz e a espada”. Será que Nikolai quis dizer que esquecer é difícil ou que é essencial para nosso bem-estar?
É difícil esquecer. Todo mundo já tentou se livrar de um episódio triste, uma discussão horrível, um rompimento. A lembrança fica lá e, quando a gente menos espera, fisga como um anzol, machuca, puxa. Ter boa memória, em alguns casos, é um peso, porque até os detalhes reaparecem com nitidez.
“Você tem memória de elefante”, sempre escutei isso. Eu já passei por situações ridículas por falta de memória. Abracei uma desconhecida, fiquei feliz porque pensava ser Jaqueline, a filha da Neusa. E não, não era. Pior do que isso foi eu comentar o ocorrido com minha mãe e ouvir: o nome da filha da Neusa é Sandra. Tudo errado. Minha memória me trai, ao contrário da dos elefantes que nunca se esquecem.
Uma vez ouvi de uma médica que esquecimento é mecanismo de defesa. “Você acha que uma mulher passaria por mais de um parto se ela não se esquecesse?”, disse sorrindo. A gente se esquece de nomes, pessoas, livros, filmes e datas de aniversário (peço desculpas por isso), mas também se esquece das dores.
Seria essencial escolher o que queremos esquecer.
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A memória como novas experiências
Não me lembro quando foi que assisti “Para sempre Alice” ou “Poesia”, talvez não me recorde de todo enredo, mas lembro do sentimento.
Eu não escolheria esquecer as palavras. Converso com amigas sobre gente. Escarafunchamos palavras, reviramos páginas, cavamos atrás de lembranças. Compartilhamos histórias felizes, tristes, engraçadas e deploráveis. Em alguns momentos percebemos que aquelas pessoas tão próximas de nós, na verdade, se tornaram inimigas. Só um milagre para inverter o jogo crucial da ira. Mas como sorriram as palavras daquela outra médica sobre os partos e a força da natureza, o tempo acaba transformando tudo em outra coisa.
No fim das contas, se a gente escolhe o que fazer com nosso tempo, a memória poderá se recompor em novas experiências e, quem sabe, nas voltas do mundo. Talvez a gente reencontre dores que causamos ou que nos causaram numa paleta de tons pastéis, perfeitas para o perdão ou o esquecimento.
Cai dentro!
O artigo mencionado no texto foi publicado na Revista Galileu do jornal O Globo, em 2018, e você pode conferi-lo aqui. O professor Nikolai Axmacher continua sendo pesquisador e referência quando o assunto é construção de memória. Ele colabora com diversas Universidades na Alemanha e também foi nomeado codiretor no Centro Intracraniano de Pequim. Taí uma pessoa que deve gostar muito de ler.
Se liga nas prateleiras da nossa biblioteca
Conheça “Ainda assim te quero bem”, uma novela composta por trocas de mensagens entre mãe e filha que não se veem há mais de dez anos. A razão do desencontro você terá que descobrir na leitura, assim como se caberá ou não um pedido de desculpas.
O texto foi escrito por mim, Penélope Martins, junto com Caio Riter, e o livro composto com ilustrações de Talita Nozomi e capa de Luciana Facchini.