Pega a visão! Lendo o mundo nas entrelinhas. Se liga que o presente é coisa do passado! Um monte de histórias inspiradas em outras tantas, com dicas de Penélope Martins.
Pega a visão! Cuidado com a Cuca!
As bruxas estão presentes em diversas culturas, e suas histórias variam de narrativas horripilantes à possibilidade de curar doenças. Tudo acontece num passe de mágica, com varinha, conjuro ou poção.
Atravessando o tempo e o espaço, os contos se misturam, e a origem de todos eles pode ficar tão distante, que a gente até passa a acreditar que as bruxas foram inventadas pelo Senhor Relouin.
Um fazendeiro mal humorado que plantava abóboras nos Estados Unidos da América, lá para as bandas de cima de um outro país, esse mais parecido com o nosso, que tem a grande e tradicional festa do Día de los Muertos. Sim, é no México que as “caveiras” dançam a noite todinha. A ideia de pintar o rosto com máscaras de ossos e flores lembrando os mortos é justamente celebrar a memória e a vida daqueles que já se foram.
Relouin, Halloween, Dia das Bruxas
Mas e o tal Relouin? Cultura pagã ou cristã? Nas voltas que o mundo dá, se a gente for pesquisando a fundo, ficam evidentes camadas sobrepostas de valores simbólicos, o que comprova que a história é viva, orgânica, perene transformação.
Poções mágicas que lá na Idade Média levaram o povo a acreditar em feitiçaria, hoje em dia, podem ser conhecidas simplesmente como medicina natural. Sabe aquele xarope feito de folhas de guaco ou erva-cidreira para tratar tosse que o povo antigo sabia misturar no caldeirão com açúcar? Então, por causa de remédios caseiros inocentes, muita gente foi perseguida e até condenada à fogueira. Imagine só o que a Inquisição faria se visse um simples vídeo aparecer nas redes sociais?
Tecnologia ou ignorância, os tempos sombrios medievais ficaram para trás, ainda bem, e as receitinhas de avós com propriedades curativas das plantas foram explicadas por sucessivas pesquisas em universidades do mundo todo. E viva a magia da ciência que descobriu que o mundo é redondo e gira sobre seu eixo e ao redor do sol!
Mas, vamos seguir a conversa para esse outro ponto: o poder dessas narrativas.
Histórias que formaram o mundo
Desde muito antigamente, as pessoas contam histórias para explicar todo tipo de fenômeno, manifestação, sentimento, complexidade das relações. De geração em geração, muitas vezes sendo recontadas de outras maneiras, com novos detalhes e até distorções, as histórias seguem um rumo com um corpo próprio capaz de se transformar à medida em que percorre territórios e atravessa tempos, impregnando-se de crenças e valores morais.
Não é incomum encontrarmos uma correção significativa na origem de contos, por exemplo, uma mãe má que foi substituída por uma madrasta porque pegaria mal falar da própria mãe.
Os tempos mudam, e os costumes se intrometem nas histórias, para o bem e para o mal, criando estereótipos, muitas vezes, pesados que estruturam os preconceitos sociais.
Por isso, é claro que os mitos, as lendas e os contos podem ser questionados, afinal, se no começo do mundo o fogo era um mistério assim como o eclipse e um simples xarope de folhas medicinais, hoje em dia, com auxílio de incontáveis pesquisadores, a ignorância pôde ser afastada com uma dose generosa de investigação científica.
Bruxas do Brasil
No Brasil, como a cultura predominante é a cristã, muitas vezes as bruxas são perseguidas tal e qual eram na Idade Média. Explico: associa-se a bruxa ao satanismo, e essa palavra por si só já é tabu. Porém, todavia, contudo, as tais bruxas lá do tempo do antigamente eram as sábias que conheciam ervas medicinais para curar seu povo antes da invenção da penicilina.
Aliás, a dipirona, aquele elemento de composição do remédio para dor de cabeça, é uma planta, e por aí somos capazes de deduzir tantas outras coisas.
Na cultura popular brasileira, talvez a bruxa mais famosa seja Cuca, mas essa feiticeira já existia antes em Portugal e na Espanha, por vezes descrita com feições de dragão. Maldades, Cuca faz apenas para quem fosse desobediente. Seria uma forma de manter as crianças atentas às recomendações dos adultos? Hoje em dia pode ser motivo de crítica pesada os adultos amedrontarem as crianças para que elas não saíssem à noite, mas, em outro contexto, com os perigos da época, poderia significar salvar suas vidas.
Bruxa pra lá e pra cá, globalização e comunicação em um único clique, e é óbvio que o dia 31 de outubro trouxe o Halloween para as terras de Saci.
Muita gente não gosta disso, acha que a cultura brasileira não pode ser transformada pela cultura norte-americana, no entanto, a cabeça de abóbora já aparecia nas tradições pagãs dos celtas, na Península Ibérica e Grã Bretanha, e elas seriam responsáveis por muitos elementos dessa festividade, inclusive a moranga transmutada em cabeça e feita de lanterna.
Ou seja, antes da invenção do cinema, da televisão, da internet, a magia das histórias já cruzava todo tipo de fronteira, e não era necessário nem wifi para que as vassouras voadoras alucinassem travessias pelos territórios e suas tradições. Tudo misturado, o jeito é pesquisar a raiz dessa mandrágora!
Ah, a origem da palavra Halloween é dia de véspera de toda santidade, pois a festa pagã foi reordenada no calendário cristão para anteceder o dia 1 de novembro, Dia de Todos os Santos. É como eu disse, a Senhora História é como a água, se tentar segurar, ela corre entre os dedos. Então, simbora cortar umas abóboras e juntar Rélouin na quizumba de Saci.
Pega a visão e cai dentro!
O livro O Martelo das Feiticeiras retrata as práticas cruéis para caçar e combater as bruxas na Idade Média, recuperando um registro palpável de como o machismo e a misoginia exterminam vidas de mulheres há muito tempo.
Escrito por dois inquisidores, em 1484, o livro é uma espécie de “manual de tortura” e constituí elemento importante para compreensão dos danos e as perversidades da sociedade patriarcal.
No Brasil, há edição da obra prefaciada pela célebre historiadora Rose Marie Muraro (1930-2014) contextualizando a história de perseguição às mulheres. Esse texto é essencial, e pode ser encontrado em diversos sites de forma gratuita.
Se liga!
Nas prateleiras da nossa biblioteca e conheça Aos Dezesseis, de Annelise Heurtier, um romance baseado em eventos e pessoas reais que viveram a integração, em 1957, de nove estudantes negros em uma escola de alunos brancos no sul dos Estados Unidos, uma das primeiras tentativas de acabar com a segregação racial.
Uma leitura que faz chorar e vibrar pela luta das protagonistas, além de inspirar debates importantíssimos sobre racismo e misoginia.