Pega a visão! Se liga que o presente é coisa do passado! Um monte de histórias inspiradas em outras tantas, com dicas de Penélope Martins.
Se eu quiser falar com Deus?
No mundo atual, se alguém quiser falar com Deus em silêncio, deverá (tentar) vencer os estímulos desses mais variados conteúdos que antes a gente nem sabia que existia, esse intenso fluxo tecnológico que leva a cabeça da gente… pra onde? Mesmo de olhos bem fechados, temos um turbilhão de pensamentos que se movimentam, transformando-se em segundos. Onde está Deus nisso tudo?
Um amigo, certa vez, respondendo a minha pergunta, colocou sobre a mesa dois pires idênticos. Um ele batizou de segredo e o outro de mistério. O mistério e o segredo. O segredo e o mistério.
É imediata a nossa atenção quando alguém, vigilante, sussurra:
– Posso te contar um segredo?
Meu amigo me disse naquele momento que poderíamos trocar segredos, falar sobre eles, decifrar algum problema e, eventualmente, até encontrarmos juntos com essas conversas uma boa solução.
– E o mistério?
O Brasil tem como padroeira a imagem de uma mulher negra: Nossa Senhora de Aparecida. Uma das histórias diz que a imagem foi encontrada por pescadores no rio durante um período de escassez. Primeiro, teriam encontrado o corpo, depois a cabeça que se encaixou com perfeição. Unidas as duas partes da santa, a pesca voltou a ser farta. Uma outra história, conta que um homem escravizado, ao ser perseguido, ajoelhou-se e evocou a santa. As correntes se quebraram e o homem retomou a sua liberdade.
É um mistério como consegue uma ínfima semente brotar e dela crescer caule, galhos, folhas e flores. Um mistério essa semente ir parar na rachadura de concreto e, mesmo sem nutrientes crescer viçosa.
O milagre é quando a gente vê acontecer o que não consegue explicar. É desse jeito quando reencontrarmos uma pessoa amada no nosso abraço, mesmo que tenham existido inúmeros desencontros, despedidas, rupturas. Brota um sentimento que perdoa, uma vontade que dê flores e frutos.
Pega a visão! Nossa padroeira, Nossa Senhora Aparecida
Não há segredo, fácil reconhecer que, na terra dos protegidos por uma santa mulher negra eleita à padroeira, continuam cotidianas as violências racistas, ações preconceituosas de gênero, as desigualdades de classe, as intolerâncias de credo. O Brasil é um país muito religioso, e uma pessoa que tem Deus no coração é uma pessoa boa, não é?
Há quem acredite em Deus, há quem negue, também tem a dúvida. Mas todos os caminhos, como ensina um velho conto budista, levam o caminhante para o mesmo lugar: o mistério.
Dia 12 de outubro, no Brasil, é feriado. Dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Aparecida, a imagem santa que foi recolhida por trabalhadores no dia de muita labuta, onde quase não existia mais o fio da esperança.
Não importa a religião ou a não religião, não importa se acredita em santa ou não, se gosta de imagens ou não, se canta ou bate tambor ou reza em silêncio: esse feriado nos faz lembrar de que todos precisam se unir com propósitos maiores do que os próprios interesses, por uma vida digna.
Preconceitos, intolerâncias e milagres…
Nesse mês de outubro de 2023, muitos povos estão em guerra por conflitos de terra e intolerância cultural e religiosa. Esses conflitos são milenares, e pode ser que nunca acabem. Um milagre acreditarmos na paz e mantermos em nós a fé na vida e nos seres humanos, mas quem não acredita em algum tipo de milagre?
– Ter Deus é ter amor?
Nesta leitura de palavra, não tenho como terminar com uma solução, porque o segredo pode ser revelado, conversado… e Deus é diferente disso, é o próprio mistério.
No entanto, se toda ideia sobre algo divino é coletiva, provável pensar em ter amor. E ter amor é ter respeito. E ter respeito é ver no outro a mesma dignidade que desejamos ser respeitada e amada em nós. O amor, essa força misteriosa que faz uma pessoa se lançar ao perigo para salvar outra pessoa que nunca viu, talvez seja a melhor solução até para o que ainda não compreendemos.
Em nome das tantas intolerâncias que arrancam a vida de pessoas no nosso país e no mundo, deixo aqui um pedido de socorro para todos nós para outubro, novembro, dezembro e tudo mais que vier: que a gente insista em ler mais e melhor para que toda pessoa protagonize uma vida digna.
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Cai dentro!
Se você nunca leu Ariano Suassuna, sempre é tempo de descobrir um pouco mais de Brasil com esse autor que não só teve a coragem de colocar Nossa Senhora da Aparecida ao lado do diabo no momento do juízo final, como imortalizou outras personalidades da cultura popular, citemos, pois, Chicó e João Grilo.
O Auto da Compadecida foi escrito para o teatro e sua primeira dramatização se deu em 1956, em Recife. Ariano Suassuna compõe o texto com histórias religiosas e contos de boca, alguns, inclusive, encontrados nos poemas de cordel do grande Leandro Gomes de Barros. A obra também não ficou livre de mistura, e na adaptação para cinema incorporou personagens de outros romances de Suassuna.
Em breve, será lançado o Auto da Compadecida 2, com elenco deslumbrante como foi o primeiro. Dá tempo de ler o livro, ver o primeiro filme e se jogar nesse caldo de cultura popular que faz a gente amar as histórias do Brasil com todas as suas complexidades.
Se liga nas prateleiras da nossa biblioteca
Conheça o conto “Pés Descalços”, um texto que eu, Penélope Martins, escrevi, para contar a história de uma jovem que foi impedida pelos pais de conviver com sua avó por causa de sua religião. A obra foi composta com ilustrações de Bárbara Quintino.
Dona Esmeralda, essa velha protagonista que conhece os segredos das ervas que curam dor do corpo e do coração, revela aprendizagens que viveu com as mais diferentes crenças, evocando o perdão e o amor como a própria essência do divino mistério.
